quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Fizeram-se hérois na Torre

Eram mais de cinquenta e foram maiores que a Serra da Estrela. Venceram 137 km, 2700 metros de desnível acumulado, três subidas de 1ª. categoria, calor e vento, e consagraram-se como heróis na Torre, no ponto mais alto de Portugal Continental. A primeira edição da Clássica da Serra da Estrela foi pensada para pouco mais de uma mão cheia de aventureiros, mas acabou por superar as expectativas de participação mais optimistas, reunindo dezenas de ciclistas de diversas proveniências, incluindo de Espanha.
A jornada serrana de 2010 revelou o embrião deste tipo de grandes eventos de ciclismo amador em Portugal, com as melhores características das que se realizam no estrangeiro e que, à falta no nosso país, todos os anos levam muitos inveterados praticantes portugueses desta modalidade a «emigrar». A «nossa» Clássica teve (e terá) os condimentos para manter, quiçá aumentar, o êxito conquistado logo na estreia. É um exigente desafio de superação individual, enorme desafio à resistência física e anímica, uma experiência que ficará na memória desportiva de todos os que participaram. E a estes, com a classe, coragem, tenacidade e espírito de sacrifício exibidos, se deve o sucesso retumbante desta primeira edição.
Como se não bastasse a elevada dificuldade do percurso (que se sabia), o nível de exigência desta clássica foi inflacionado pelo forte empenho dos seus participantes (como se antevia). O protocolo pré-estabelecido foi respeitado na íntegra e desde a partida de Covilhã, pouco depois da oito horas da manhã, até ao alto do Gonçalo, a primeira grande subida do dia, cumpriu-se andamento moderado para garantir a coesão do pelotão e atenuar desgastes prematuros. Todavia, não se pense que foi uma toada de passeio, mas sim ritmo adequado àquela fase do percurso, em terreno algo acidentado até Belmonte, como revela a boa média de 30 km/h, mercê de um trabalho meritório que, na maior parte, pertenceu ao Freitas.
O início da subida surpreendeu quem esperava facilidades. Rampas duras intercaladas com alguns troços em empedrado na passagem pela localidade de Gonçalo não permitiram, a ninguém, uma ascensão descansada. Na sua terra-natal, o camarada Sérgio Gomes, da Casa do Benfica de Belmonte, assumiu a dianteira do pelotão, liderando-o antes alguns conterrâneos mais madrugadores que assistiam à passagem do inesperado grupo de ciclistas.
Enquanto se continuava a serpentear a caminho de Seixo Amarelo, a brisa matinal tornou-se abafada, ameaçando com temperaturas altas para a fase final, que felizmente não se confirmaram. À medida que se subia, a estrada tornava-se cada vez mais estreita, a paisagem mais bela e a inclinação, felizmente, mais suave. No alto de Gonçalo, o objectivo estava cumprido: o pelotão mantinha-se praticamente compacto, descontraído e motivado – mas ninguém duvidava que os últimos 10 km a 4,6% tinham «ficado» nas pernas.

Penhas Douradas
Após a neutralização, a clássica assumia a sua plena dimensão, com andamento livre a impor gestão rigorosa do esforço. Logo na fase inicial da descida para Valhelhas, os Carb Boom lançaram-se a alta velocidade, impondo desde logo opções aos demais. O bom ritmo (média de 48 km/h) isolou, na frente, um grupo de não mais de 10 ciclistas, mas com a entrada no falso plano ascendente para Manteigas, o abrandamento permitiu a reentrada da maioria dos restantes, não demorando a que o pelotão voltasse praticamente à formação original.
Todavia, houve quem não conseguisse reentrar, por motivos vários: o Freitas foi um deles, vítima da quebra de um raio no início da descida. O esforço empreendido na tentativa de recolagem custou-lhe... o resto. Embora algo distante da grande forma de Junho, que lhe valeu o seu melhor Quebrantahuesos, esta Clássica foi mais uma prova da sua inquebrável abnegação.
Acabava-se de chegar a Manteigas e ao sopé das Penhas Douradas (16,7 km a 4,7%) e logo à entrada da subida andamento de grande nível! Os mais fortes e trepadores assumiam-se, entre eles, o André e o Lopes (ambos da Carb Boom), a meter ritmo de «pro», mais uma vez a recomendar escolhas rápidas entre os restantes: pegar ou largar! Mesmo assim, nos primeiros 2/3 km, no grupo da frente ainda se mantinham cerca de 25 unidades, mas quando um ciclista da Covilhã (de azul) assumiu a condução, o andamento tornou-se altamente selectivo.
No meu caso, chegava a hora de baixar a adrenalina e impor a racionalidade. O grupo principal partiu-se dois ou três ciclistas à minha frente e o espaço abriu-se num ápice. Na frente, seguiram cerca de 15 elementos, atrás, num segundo grupo, pouco mais de cinco: eu, o Eurico e o Miguel (Palmeiras Resort... Vila Franca), o Pedro Bike (dos Duros do Pedal) e mais um ou outro que não identifiquei.
Naquele momento «chave», em que se esgotava o tempo para ainda recuperar, o Miguel perguntou-me: «Como é Ricardo, vamos lá ou seguimos ao nosso ritmo?». A minha resposta, na primeira pessoa - «Não, não, eu fico!» - tinha de facto a pretensão de os convencer a permanecer, como aconteceu. E foi, sem dúvida, a decisão certa! Para todos.
De qualquer modo, sofri muito para me manter ao ritmo da dupla de Vila Franca, que foi gigante nas Penhas. Após dois ou três km em que fui eu a estabelecer o andamento-padrão, ao longo da restante subida estive em constante dilema entre não querer desaproveitar a fantástica companhia ou «largar» para baixar pelo menos 10 pulsações às 173 de média que fiz no alto. Porque a subida, embora rápida (a nossa média foi de 22 km/h) é longa, parece interminável. Decidi-me por continuar, mesmo que, na minha mente, pairasse o fantasma do «empeno».
Para mim, este foi o momento crucial da Clássica. Mas terá sido também para a maioria, e principalmente para alguns elementos que se forçaram a um nível ainda superior no grupo da frente, sem a devida ponderação. Alguns já estavam à vista na fase final da subida, e logo ali, ainda com o colosso da Torre para superar, demonstravam preocupantes sinais de fadiga.
Digo isto, como reflexo do meu estado à chegada às Penhas: cansado, massacrado, receoso do que estava para vir. Mas tinha uma vantagem, privilégio que não queria abdicar depois de tanto esforço: a presença dos meus parceiros do grupo que se formou em Manteigas. Mesmo sem o Miguel, que parou para abastecer na fonte das Penhas, os demais pareciam estar para durar, e colaborar. Tanto mais, que a irregular ligação ao Sabugueiro trouxe dificuldade adicional: o vento. Recuperar devidamente foi uma miragem, como ainda era a Torre...

A Torre
Surpreendentemente, na aproximação ao Sabugueiro o grupo tresmalhou! Péssima decisão, que só encontra explicação no ímpeto e nalguma inexperiência. Houve acelerações despropositadas e respostas ainda mais, mas acima de tudo perder-se a noção da importância da unidade na abordagem à fase mais exigente da jornada.
Assim, se os meus companheiros pareciam perder a consciência do valor da coesão, restava-me mantê-la. Para tal, não podia perder o andamento-guia, o Eurico, quinquagenário e trepador de grande classe, que dava maiores garantias. No final da descida, quando pareceu inquieto com a pequena vantagem dos outros dois ou três elementos do nosso grupo, sensibilizei-o para as agruras da saída do Sabugueiro e para a importância de encontrar rapidamente o ritmo de subida.
Assim, logo que a estrada apontou ao céu, com inclinações superiores a 10% e média de 8,3% durante 5,5 km até à Lagoa Comprida, iniciou-se a batalha dura, lenta e silenciosa. Foi como se o Mundo passasse a câmara lenta. Restavam 18 km de sofrimento. E que sofrimento naqueles primeiros quilómetros, ainda marcados pela «violência» das Penhas! Ritmo de pedalada no limite mínimo, pulsação no limite máximo – nestas condições é fundamental manter o andamento certo, sem oscilações. Um desafio à resistência física e mental, e à tentação de querer alcançar (logo) quem vai à frente.
Quando entrei na subida, após aquela curva fechada, sobre a famosa pequena ponte, tinha 15 metros de desvantagem para o Eurico. Pareciam à distância de uma ligeira aceleração, de um repelão – que seriam suicídio! Foram, precisamente, os mesmos 15 metros que ainda nos separavam mais de 5 km depois, à chegada à Lagoa Comprida. Para trás, tinham sido dobrados diversos elementos, incluindo os nossos antigos parceiros e grande parte dos que seguiram no grupo da frente nas Penhas. Nos penosos 6 km do Sabugueiro à Lagoa fiz médias de 12 km/h e 176 pulsações.
Após a Lagoa, a inclinação torna-se irregular, a pendente baixa e inclusive há descidas que permitem aliviar a tensão muscular, encontrar outros ritmos de subida. Mas com a altitude acima dos 1500 metros, o oxigénio fica rarefeito, o rendimento baixa e as pernas parecem não responder da mesma maneira – sem motivo aparente...
Esses factores pesaram no rendimento do meu guia, o Eurico, e os duráveis 15 metros esfumaram-se num ápice naquela longa recta a seguir à barragem, batida a forte ventania. Mas tinha-lhe uma dívida que queria saldar, pela ajuda que me prestou e em homenagem à sua grande classe e esforço. Procurei dar-lhe roda amigável, abrigada do vento que nos fustigava, indicando-lhe as trajectórias mais suaves. No entanto, a fadiga venceu-o. A glória, porém, estava conquistada.
Eu segui. Na peugada do duo Jorge (Contador) de Alverca e Lopes (Carb Boom), que estava «à mão» à entrada no carrossel dos últimos 10 km, mas que, afinal, só consegui alcançar à passagem pela pista de esqui, a menos de 2 km da Torre.
Como referência, o meu tempo final, na Torre, foi de 4h37m20s, à média de 24 km/h (113 km) e de 5h09m40s, na Covilhã, a 26,5 km/h (137 km).

Os heróis
Desde os primeiros a chegar ao cume - André, Marco Silva, Rui Torpes, o Azul da Covilhã e o Esteves (dos Duros) - que voaram montanhas acima, aos derradeiros a atingir o cume mais alto, todos foram «grandes, enormes», insuperáveis. Colocaram à prova corpo e mente, alguns roçando os seus limites, a maioria atingindo o ponto mais alto de Portugal Continental com pedalada titubeante, esforço estampado no rosto, mas a incontrolável satisfação do desafio superado.
Algumas imagens ficaram na retina. Uma «tocou-me» a mim, quando algures a seguir ao Sabugueiro, ao ultrapassar o Álvaro dos Duros, dizia-me ele: «Oh, Ricardo, tás a passar mal ou quê?». Eu hesitei a responder, porque mal não me sentia e não me estava nada a apetecer desperdiçar fôlego. Mas ele quis ser mais directo. «Não deverias estar mais à frente?». Então não podia deixá-lo sem esclarecimento: «Quem te enganou?». Fim de conversa.
Guardo também o semblante do Carlos Gomes, na Lagoa Comprida, quando o «encorajei», dizendo-lhe que faltavam «só» 10 km, e o do Carlos Cunha a descer para a Lagoa, como se continuasse a subir, de tão cansado!
Na Torre, os heróis chegavam a conta-gotas. Houve quem se tenha atirado literalmente ao chão, vencido pelo cansaço, mas vencedor de uma das maiores provações da sua vida. Outros, em que o sorriso de orelha a orelha se confundia ainda com o esgar do sofrimento.
Espantou o aparecimento de rompante do Guedes, velho companheiro nestas andanças, que pedalava como se tivesse... a começar. Terá feito uma subida final em fantástica recuperação mas não parava de se lamentar que a malta andava muito depressa... no plano!
Maltratado chegou o Miguel, que depois «daquela» exibição nas Penhas não se esperava que passasse tão mal? Mas quando a fraqueza ataca na alta montanha, o 39x23 pode matar. Pelo contrário, o Paulo Pais agradecia ao 39x28 o facto de estar ali... E sobre o Evaristo dizia-se que, na subida final, a cada 100 metros, sentia as cãibras a mudarem de perna.
Melhor estavam «nuestros hermanos», a confraternizar animadamente lá no alto, como se comessem montanhas ao pequeno-almoço. E a Sra. Torpes, a Maria, que repetiu a façanha de 2009 e fez grande parte do percurso sozinha, logo bem acompanhada...
Comuma todos, a intensa paixão pelo ciclismo. A Clássica da Serra da Estrela é vossa! E para o ano, será ainda maior!

P.S. O lamento pelas aparatosas quedas do André e do Marco Almeida, na descida para a Covilhã, que levou o primeiro ao hospital para observação. Felizmente, não implicou mais cuidados e o «puto» em breve estará fino para continuar a arrasar. Rápidas melhoras!

Ver as crónicas do camarada Manso, em ciclismo2640.blogspot.com e dos nossos ilustres vizinhos espanhóis, em elsabiobike.blogspot.com